Querida,


Te escrevo às voltas de um mar revolto de emoções. Adiei esta carta porque, sempre que me encontro diante de ondas que quebram tão violentamente, colocar-me a serviço das palavras dilata tudo.


Narrar-te só é possível com inteireza, já que minhas palavras chegam como espelhos da realidade. É por isso que, às vezes, demoro para te responder, porque me deparar com o papel é encarar tudo isso que tantas vezes estou adiando sentir.


Porque escrever é, profundamente, sentir. A página em branco sempre será, para mim, um abismo que me coloca diante de todos esses afetos. É importante, tantas vezes, encará-lo de frente, pois é ali que o eco de tudo o que é vasto, misterioso e profundo se comunica de volta. Mas isso também pode apavorar.


A página vazia e sua escuta incondicional. Te escuta incondicionalmente, é verdade, mas te devolve. E então, quem escreve passa a se ouvir também e, tantas vezes, se surpreende com o que tem a dizer.


Nas páginas encontro esse incessante terreno que não busco em nenhum outro lugar, senão no papel. Segredos, suspiros, medos, desejos, raivas, vergonhas, confidências, angústias, imoralidades — tudo cabe, e nada passa despercebido.


A verdade é que eu gosto de dar nome às coisas, querida, mas algumas bagunças carecem de tradução. Assim como certas questões encontram correspondência não no mundo externo, mas no nosso próprio universo interior. E é aí que a escrita se transforma nessa ponte que revela: às vezes, em uma fluida travessia; outras, sendo um tanto turbulenta, mas sempre um caminho.


Por fim, não se esqueça: pode ser reconfortante contar com o papel, embora nem sempre seja confortável. Endereçar-te faz com que todos esses verbos ganhem outro peso. E, ainda que eu demore a responder, não deixe de escrever em seu diário; ele sempre estará aí para ouvir.

Francesca Woodman, Untitled, 1979.

Uma artista: Francesca Woodman (1958-1981). Artista cuja obra explorou o tempo, a identidade e o corpo feminino como território. Seu trabalho explora visualmente a relação do corpo com o espaço, onde o desaparecimento é marcado como uma forma de presença. Em autorretratos borrados, atrás de cortinas ou em fuga pela própria casa, sua fotografia está profundamente ligada à performance.


Um livro: Não poderia escrever esta carta sem indicar este, mesmo que já tenha circulado bastante por aí. Caderno proibido, de Alba de Céspedes (Companhia das Letras).


“Vejo as páginas em branco, repletas de linhas paralelas, prontas para acolher a crônica de meus dias futuros, e mesmo antes de vivê-los já fico perturbada. Sei que minhas reações aos fatos que anoto em detalhes me levam a me conhecer mais intimamente a cada dia. Talvez existam pessoas que, conhecendo-se, conseguem se tornar melhores; eu, porém, quanto mais me conheço, mais me perco.”


E, se posso recomendar um segundo, o meu recém-lançado livro de poemas, Guardar um corpo com palavras (Editora Planeta).


Um filme: Por fim, assisti há algum tempo a A filha perdida (2021), de Maggie Gyllenhaal. Baseado em um romance de Elena Ferrante, o filme fala sobre o gesto de encarar o próprio interior e sobre como o que tentamos silenciar encontra uma forma de se manifestar. A atuação de Olivia Colman é um fascínio à parte.


Com amor,

Cristina Rioto

@caixadesaida