Que bacana poder vir aqui conversar sobre criação, arte, essas coisas. Que bacana você querer me ler (pode desistir agora também, de repente a próxima carta é de alguém que te interesse mais, ou que te interesse de todo! Sem mágoas…).
Eu não sei em que lugar você está. De geografia e de vida.
E também de relação com a arte, e em que forma dela. Mas me convidaram pra falar da minha relação com isso tudo, e eu realmente acho que ouvir histórias de gente mais velha (estou de saída supondo que sou mais velho que você), mesmo que elas sejam fundamentalmente diferentes da nossa (e talvez até especialmente nesses casos), tem o poder de dar uma iluminada em coisas que a gente vem vivendo.
Mesmo que a pessoa em questão comece com:
Acima de tudo, eu sou um adepto daquela técnica de jogar as coisas na parede e esperar pra ver o que gruda.
Eu leio meio sem método, nunca anoto, não ficho nada, não “pesquiso”. Eu ando meio à toa pelo mundo dos romances, filmes, quartetos de cordas, quadros, e quando eu vejo, sem nem perceber, trinta anos depois, uma ou outra coisa ficou. E me mudou pra sempre.
Uma pequena frase, como dizia o nosso amigo Proust.
Em 1999, acho, um aluno me emprestou um livrinho chamado Zen Guitar, que era, pasme, exatamente isso. Uma reflexão sobre guitarra a partir de um ponto de vista zen.
Desse livro, eu tirei uma tatuagem que trago no peito até hoje (ichi-go ichi-e, dá uma googlada) e duas ideias. Duas frases que, se não me engano, eram de Jimi Hendrix.
Uma: Se você errar uma nota num solo, não fuja dela. Retorne, insista e faça ela ficar certa.
Outra: Eu ouço coisas na minha cabeça que, se eu não tocar, ninguém vai ouvir.
I hear in my mind all of these voices; I hear in my mind all of these words; I hear in my mind all of this music: and it breaks my heart. Regina Spektor, outra dessas coisas que me pegaram desprevenido e ficaram pra sempre.
E o negócio é que boa parte do que eu “criei” na vida, poesia, prosa, teatro, vem dessas duas noções. Aceitar o que acontece por acaso, ou por equívoco, incorporar no tecido final. E entender que dar a público é criar aquela coisa (pode ser boa, pode ser má, pode ser horrenda ou [ainda pior] desinteressante) que só você podia fazer.
Isso me guia como tradutor, nesse processo fascinante que é o de ir encontrando soluções criativas pra problemas que outras pessoas estabeleceram pra você. Uma espécie de quiz em tempo real.
Mas especialmente isso me guia na hora de lidar com as coisas que me propus inventar.
Eu escrevi, por exemplo, e publiquei um livro de poemas absolutamente esquisito, que deve ter interessado meia dúzia de pessoas. Mas era meu. E continua sendo aquilo que eu podia ter feito.
Aquilo que me cabia fazer.
Mas na real aquelas duas frases normalmente me levaram a lidar com coisas que tinham mais cara de “encomenda”. Mesmo que sejam encomendas minhas mesmo. É que eu gosto muito de parâmetros, de restrições, e não vejo nenhum motivo pra que eles briguem com aquelas duas ideias. Essas coisas são o que me permite brincar dentro das regras que me foram dadas, ou que eu mesmo inventei. São tarefas, missões a cumprir.
Quando eu escrevi a minha peça de teatro, Ana Lívia, eu tinha regras muito claras (quantas atrizes, quais, que tipo de peça, que duração etc.), e isso não me impediu de ficar completamente imerso e meio perdido nas conversas das duas personagens. Nunca senti, na minha vida inteira, tão intensamente aquela coisa de se ver à mercê das vontades de vozes que, em teoria, você mesmo inventou.
Elas falavam e faziam o que queriam, e eu ia acompanhando.
Até hoje eu vejo a peça e não acredito que fui eu que escrevi. Ana e Lívia são muito maiores que eu.
Já quando escrevi o meu romance, Lia, eu parti de regras muito claras. Queria criar um romance em folhetim pra um jornal (o Plural) que o meu irmão (Rogerio) estava fundando. Mas não queria me comprometer com “trama” e desenvolvimento, e sabia que não teria tempo de escrever tipo dez páginas por semana, e além de tudo queria manter uma periodicidade curta. Além do mais, como o site era novo, eu sabia que os leitores podiam acabar descobrindo a história lá pelo capítulo dezessete, e queria que isso fosse possível.
Capítulos independentes, de cerca de 2 mil caracteres, sem qualquer sincronia, que fossem unificados apenas pela presença, de um jeito ou de outro, da Lia.
Passei dois anos fazendo isso e me apaixonando por essa mulher inexistente, que nem eu mesmo me permitia ver por inteiro.
Passei dois anos pensando em técnicas diferentes, abordagens novas, jeitos cada vez mais tortos de vislumbrar sem dar a ver, de mencionar sem analisar.
Anos depois, é claro, veio o momento de rever, cortar um terço dos capítulos, reordenar, reescrever aqui e ali, e apresentar de novo essa mulher, fruto de muito acaso, de muito “deixa ser o que é pra ser”, e também de todo um processo atento e cuidadoso, curioso, de escrita e reescrita.
Ou ao menos o romance que eu fiz. E que só eu podia fazer.
Porque era a nota errada que só a minha mão aceitou.