Faz alguns dias, cedo de manhã, eu já escrevia há um par de horas naquele que prometia ser um bom turno de trabalho, com as ideias encontrando frases sem atrito, com alegria, em um momento em que a prática da escrita faz pensar nos gatos que lambem a própria pata com diligência e dedicação apenas porque esse é o ofício previsto para eles nos dias, e que deve ser feito com ou sem Sol, sempre de corpo inteiro.


Talvez já estivesse no quinto parágrafo nesse ritmo, uma enormidade de linhas para mim, quando uma coisinha de nada emperrou no texto. Tentei uma ou outra solução sem alarde, mas também sem sucesso, já sentindo crescer a presença do relógio. Insisti hora adentro, tomada pela vulnerabilidade de quem roda em círculos. Não seria grande coisa, não fosse a aproximação do terrível e conhecido mal para toda alma que escreve: a distração. Dito e feito. De repente, socorrendo a mente do aperreio, surgiu a lembrança de uma cena do romance A ocasião, de Juan José Saer, em que o personagem também não sabe o que fazer com o que aparece. Ele se chama Bianco, é um homem solitário na imensa planície e leva um dia comum, quando vê uma mancha cinza e esquisita cobrir parte do horizonte. Já não pode se concentrar em mais nada, preocupado com a coisa que só cresce junto a um barulho sinistro. Não deve ser tempestade, pensa, tampouco pode ser o inimigo, e sim o inimaginável: uma tropa de cavalos selvagens, dois mil deles, no mínimo, vindo em sua direção. Embasbacado e incrédulo, o pobre humano faz o que aprendeu a fazer diante do mistério e pega uma carabina. Armado com a arma errada, espera por aquele encontro em completa paralisia, tomado de medo e maravilhamento. 


Por que aquilo me vinha à mente? Nunca sei se é a grandiosidade dos cavalos ou a pequenez do homem o que me molha os olhos nessa passagem, talvez ambas as coisas frente a frente: cavalos fazendo o que fazem os cavalos, homens fazendo o que fazem os homens. Há tanta sinceridade nas palavras que a única saída para o leitor é ser idêntico a tudo aquilo, integrante da planície. Quando dei por mim, estava olhando pela janela, os dedos já bem longe do teclado, e vendo a fantasia de Saer se apossar por completo do real. Que coisa impressionante pode uma história!, pensei, fazia mais de dez anos que tinha lido aquilo e agora tudo voltava a mim com a mesma vividez.


Respirei fundo e devolvi os dedos ao meu serviço, sintonizando de volta a concentração que vai atrás do fio da meada. Bastava ir adiante com o que eu escrevia logo antes, imaginei, tomada de inspiração e inocência. Reli um par de vezes minhas próprias linhas, mas a verdade é que já não conseguia capturar bem o que elas diziam naquela manhã, ou para onde iam. Algo importante não estava mais ali, ou será que nunca esteve?


Não foi a primeira vez, não foi nem mesmo a décima vez e espero com sinceridade que não seja a última. Aquele que também escreve há de ter compaixão e reconhecer os sentimentos: o de que as melhores intenções não escrevem um texto, o de que a angústia faz parte da escrita e a linguagem sempre está por um fio. Um sem-número de tentativas de edição se seguiu, tudo sem brilho. O fantasma da produtividade que iludia a manhã já se recolhia sob a mesa, minando as energias. Tentei escrever algo mais adiante no tempo da história, exercício de oráculo, mas o não saber era como uma praga rogada.


Bem sei, ainda assim, que a fantasia até se demora, mas gosta do silêncio. Aprendi a aceitar isso com mais força ainda em instantes de pausa e estranhamento, na confiança de que muitas horas de escrita serão na verdade feitas de pouca ou nenhuma escrita, servidas de espera. Voltei à última página e fiquei olhando para o todo, suspeitando dos momentos em que as palavras, aglomeradas, encobrem a luz.


Fui à estante e peguei meu exemplar de A ocasião. Na cena, vendo-se desamparado pela aproximação dos dois mil animais (a essa altura o leitor já sente o tremor dos cascos no chão), Bianco decide pelo impossível e, em vez de fugir, vai em direção à tropa em uma corrida tão desesperada quanto firme, enlouquecida, disposto a encontrar no próprio corpo aquilo que o faria se sentir o cavalo de número dois mil e um, libertado da carabina, mas sobretudo da previsibilidade de um homem.


Fechei o livro. “Uma história é capaz de revelar sentidos sem cometer o erro de dizer quais são eles”, disse Hannah Arendt, um fato que, na passagem que eu acabava de ler, era providenciado pela fé na imagem. Bianco, os cavalos, a carabina, a planície, o galope e os corpos de ambas as espécies “falavam” o que nem as mais geniais palavras poderiam dizer: que a vida é sim o mistério, e o mistério prefere viver em certas casas. A imagem era a casa que prevalecia nas linhas, e, por isso mesmo, a ficção vingava.


Olhei para as minhas pobres páginas percebendo a flagrante ausência: eu não tinha nenhuma imagem ali. Em lugar delas, verbos que tentavam dizer diretamente as coisas, esvaziando a fantasia. Meu texto abria mão da fábula e, por esse motivo, estava fadado ao desapaixonamento. Quantas vezes o trabalho do contador de histórias será o de chegar ao menos à metade de um cavalo?


Talvez seja isso o que Hebe Uhart chamava de “a escolha profunda”, o achado que só se pode fazer após dedicar muito tempo, além de paciência, ao olhar. Olha-se bastante para o mundo, olha-se sem produtividade, e é tamanha a falta de pressa que se descobre algo imprevisto por baixo das águas. É quase sempre pequeno, o algo, é minúsculo e talvez por isso mesmo bem-vindo à literatura. Uhart, como Saer, sugere um caminho de silêncio do autor para que as imagens digam o que precisam dizer, capazes de mordidas pequenas, porém firmes, na humanidade, muitas vezes marcando a pele de quem lê como as memórias mais sólidas de um livro. 


Não sei se Saer e Uhart foram amigos, se algum dia, em um outono chuvoso, compartilharam um café com medialunas em Buenos Aires. Teriam preferido não conversar sobre literatura, certamente, e sim tratar do que mais lhes comovia: a misteriosa vida em companhia de um gato preto, no caso dela, e de um caramelo, no caso dele. Com tantas horas de voo na adoração aos felinos, ali estariam dois escritores em plena ação na cafeteria: volumosos contempladores da experiência, especialistas em encontrar símbolos em meio à vida comum, narrando pequenas estrelas com a mesma fé de uma galáxia inteira. “Afinal, um trabalho só se consuma quando oferecido à contemplação”, disse São Tomás de Aquino, abençoando, de uma só vez, o par de olhos e a disposição a se afastar para ver.


No escritório, olhei de novo pela janela: chovia. Era fim da manhã quando apaguei tudo e me vi livre para recomeçar, outra vez.

Jean-Jacques Sempé [1932-2022]

Uma artista: Toni Morrison. Temos sorte de ter acesso a tantas entrevistas que ela deu, para além dos livros que escreveu. Um ser humano impressionante.


Um livro: As pequenas virtudes (1962), de Natalia Ginzburg. Um livro que recalibra em qualquer alma o prazer de ler e de amar as palavras.


Um filme: Joan Didion: The Center Will Not Hold (2017). Um documentário que evidencia o que foi a escrita na vida (e a vida de escrita) de Joan Didion, uma mulher que inventou os próprios procedimentos para viver de histórias.


Um beijo,

Juliana Leite