Meu caro escritor ou escritora:


Como posso repassar para você algumas das coisas que aprendi sobre o trabalho da escrita? A experiência não se transmite. No máximo, podemos comentar nossas experiências com alguém, mas isso não a transmite para essa pessoa. Ela vai ter que passar por aquilo, e essa é a parte boa, essa é a boa notícia. Só se aprende fazendo. Vai ser preciso fazer.


Escrever é antes de tudo uma forma de comunicação, e às vezes se torna algo tão bem-feito, tão caprichado, tão leve e forte, que se transforma em arte. A arte da literatura. Nem tudo que se escreve é arte; mas tudo que se escreve é uma tentativa de comunicação. Nem tudo precisa ser arte. A arte é bacana, mas não é tudo na vida. Às vezes, mais importante do que a arte é a comunicação com outras pessoas.


Escrever só se aprende escrevendo. É como nadar: aprende-se a nadar na água, e não nos livros. Livros podem ajudar, mas se você não cair na água e começar a dar braçadas, não vai nadar nunca.


A vantagem da literatura é que – por incrível que pareça – o ato de escrever (de fazer literatura) envolve três fases, que eu nomeio assim: Ler / Pensar / Escrever.


Para você ser escritor ou escritora, vai ter que ler o que foi escrito antes. Como alguém, por exemplo, poderia querer fazer música sem nunca ter escutado música alguma?


Ler faz parte da escrita. Quem lê já está escrevendo. Ler muito, ler clássicos sérios, livros bobos, teoria literária, romances de entretenimento. Ler poesia, ler romance, ler quadrinhos, ler livros didáticos, ler dicionários (sim, dicionários, e ler com prazer: o prazer da descoberta, da comprensão), ler cartas, memórias, memes, biografias


Ler e perceber as mil formas que a escrita pode assumir, de acordo com o nosso temperamento, e com a intenção do que estamos escrevendo. É um conto? Uma redação do colégio? Um poema? Um TCC? Cada linguagem é diferente. Podemos aprender um pouco de cada uma.


Pensar – esta é uma fase igualmente importante, porque não basta ler cegamente, mecanicamente, devorando um livro atrás do outro, tentando “bater metas” como se estivesse numa gincana consigo mesmo. Pensar significa avaliar o que foi lido, entender, analisar a escrita alheia, ver qualidades (“que legal isto aqui, posso usar também”) e defeitos (“muito ruim esse parágrafo, espero nunca escrever desse jeito”).


Sempre que um livro emocionar você, sempre que você tiver um deslumbramento diante de algo genial, maravilhoso, bem escrito – feche o livro e pense. Por que eu gostei disto? Sim, é bem escrito, mas como é escrito? O que foi usado nesse texto que foi capaz de produzir esse efeito em mim – nervosismo, emoção, gargalhada, tristeza, medo?


Existe uma técnica aí, e a gente só domina uma técnica se parar para examiná-la com cuidado e atenção.


E o mesmo se dá quando você acha alguma coisa mal escrita, ou insatisfatória. “Por que não gostei?” É preciso parar, examinar, comparar com outras coisas. Aprender com os erros alheios também ajuda.


Ler, pensar, ler de novo, pensar de novo Isso é o começo da criação literária, porque vai chegar o momento em que você vai atingir o terceiro estágio: escrever. Você vai sentir que já sabe algumas coisas, já domina algumas técnicas, por mais simples que sejam, e pode se atrever a criar seus próprios textos.


Esse processo não para nunca. Falo por mim – tenho mais de 70 anos e pratico essas três fases desde os 12 ou 13, quando comecei a rabiscar meus primeiros poemas, meus primeiros contos. Horrorosos, mas necessários. Quando publiquei o primeiro livro, aos 30 anos, já escrevia há mais de 15. Joguei fora milhares de páginas, guardei algumas coisas que “passavam no teste”. Mostrava aos amigos. Discutia. Ouvia críticas. Corrigia. Guardava. Não tive pressa em publicar, e isso foi muito bom para mim.


Há épocas em que a gente quer ler demais, em outras épocas a gente suspende a leitura e passa semanas ou meses pensando, avaliando ideias, projetos, adquirindo experiência de vida (sem experiência de vida, dificilmente alguém vai escrever algo que preste). E depois vem uma fase em que tudo que a gente quer na vida é escrever: de manhã, de tarde, de noite  porque encontrou um caminho, encontrou um jeito, encontrou uma voz própria que, naquele momento, se torna a coisa mais importante da vida. Isto aqui sou Eu, um Eu novo.


E esse processo é circular – a gente volta a passar por essas três fases a vida inteira. Depois que você já está escrevendo, já lê de maneira diferente. E depois que está publicando, começa a receber o feedback de outras pessoas, de gente desconhecida.


Lembre-se: ser profissional é ser lido por desconhecidos. E não pelos amigos e amigas, pelos pais e irmãos, pelas pessoas mais próximas. O objetivo maior da escrita é que aquele texto seja lido por gente que nunca vamos conhecer pessoalmente e que só vamos atingir através da nossa escrita. É arte? Pode ser, mas é também comunicação.


E é um trabalho que não termina. Eu escrevo todos os dias. Escrevo livros, roteiros de cinema e TV, peças de teatro, letras de música. Além dos livros que publico, tenho um blog, o Mundo Fantasmo, e recentemente comecei a colaborar na plataforma Substack. Para quê? Para atingir mais pessoas, para fazer circular as ideias que acho importantes ou divertidas.


Escrever faz com a mente da gente o que dançar faz com o corpo. Escreva. Dance.


Hieronymus Bosch, O jardim das delícias terrenas, 1504

Um artista: Joan Miró, artista espanhol/catalão cuja obra parece o mundo visto pelos olhos de uma criança. O poeta João Cabral de Melo Neto foi seu amigo e escreveu um ensaio excelente sobre ele.


Um livro: Sagarana (1946), de Guimarães Rosa. São nove contos longos; é a obra mais acessível do grande escritor, e pode servir como preparação para a leitura posterior do Grande Sertão: Veredas.


Um filme: O anjo exterminador (1962), de Luís Buñuel, a história surrealista de um grupo de pessoas ricas que ficam presas numa mansão, após um jantar, sem poder sair. Escrevi um livro inteiro analisando esse filme.


Um abraço,

Braulio Tavares