A você que busca, na vida, a seiva:


1. O único risco verdadeiro que você corre não é o fracasso nem a humilhação. O único risco é cair na mesmice e nos hábitos fixos, e deixar que a vida passe por você no automático e caia no ralo. 


2. O problema é que, se a displicência pode ser um hábito, a disciplina também.


No meu caso, acordo muito cedo, no horário dos que acham que merecem aplausos do despertador.


Me fecho no meu escritório e trabalho concentrada por algum tempo antes do café da manhã. Preparo algo para comer e volto, convido meus gatos para entrar e fecho a porta, e então é como se o mundo não existisse até a hora do almoço. Morro de alegria com isso.


Ponho um fim nessa alegria pela manhã (para que ela não tenha tempo de sobra para se transformar em outra coisa). É depois, lavando a louça ou tomando banho, que me vêm as melhores ideias. Agora — e isso é muito importante — eu só posso anotá-las como se não fossem nada muito sério, fazendo pouco caso. Se eu parasse para tratá-las com seriedade, eu estaria voltando a trabalhar, e as melhores ideias se rebelam contra o trabalho. Elas odeiam trabalhar, mas elas nascem graças ao meu trabalho.


Já resolvi a tradução de um poema no banho, anotando os versos na parede do box e batendo o ritmo na mão. Foi um desperdício maravilhoso de água, e acho que foi o poema que melhor traduzi até hoje.


Todo dia, é só depois do almoço que respondo e-mails e faço os outros trabalhos que o mundo pede de mim. Quando tenho tempo, as tardes são o santuário dos cochilos. Também vou à academia à tarde, no horário das madames e dos adolescentes, e tenho a certeza de que não faria metade do que faço se eu não adotasse hábitos metade de madame, metade de adolescente. Não seria quem eu sou sem ir todos os dias à academia. Ou seria sim. Vai saber.


Meus dias terminam cedo, e só durmo bem porque sei que vou poder recomeçar logo na manhã seguinte, me dedicando à única vida possível, ao que realmente importa.

no momento em que terminei de registrar essa rotina, ela escapou


3. A arte é uma forma de alegria, seja a de quem cria ou a de quem recebe. Aliás, cada livro (ou filme ou canção ou pintura ou feito atlético ou maneira de se vestir) que me marcou foi por revelar uma forma de alegria que eu não sabia existir até então. Às vezes é por juntar uma palavra com outra que eu nunca tinha visto juntas: alegria. Às vezes é pela insistência de sustentar centenas de páginas de texto, sem deixar claro aonde o livro quer nos levar, mas indo mesmo assim, e chegando finalmente a algum lugar. Então, enfim: alegria. Mesmo os livros mais tristes são alegres à sua maneira: a alegria está na forma que aquele autor encontrou de traduzir uma tristeza. 


3.a. Todo mundo que sofre por um time de futebol sabe que sofrer dentro de um combinado, dentro de um contexto, é uma forma de alegria. Quem sofre por um livro ou filme deve desconfiar disso também, ou não continuaria lendo.


4. O mesmo vale para o artista ou atleta, que é um provedor de alegria: é o que explica o David Luiz ter chorado no final do 7x1: ele não pôde fazer o povo dele feliz.


5. Qual alegria é sua, como é ser alegre à sua maneira? Não me conte.


6. Deve ser bom ser você mesma por completo em tudo o que você fizer (“Põe quanto és/ No mínimo que fazes”, Fernando Pessoa). Não é sempre fácil estar à altura de quem você é, mas o esforço confere dignidade. Faça o possível para não virar uma caricatura de você mesma. Muitos textos são indigestos porque o autor os escreveu num tom de “agora o adulto chegou”. Mas a gente desconfia que ele só é adulto no mau sentido. Enfim, isso não é uma forma de alegria.


7. Você nunca vai saber quem você é por completo. Por isso, tente fazer coisas que pareçam não ter a ver com você. Escreva numa língua que você não domina. Toque clarinete. Passe horas jogando Candy Crush deitada no tapete da sala.


8. Traduzir é uma maneira de aquecer os músculos da escrita. É tão bom para uma escritora traduzir quanto deve ser bom para um músico tocar uma peça que ele não precisou compor.


9. Trabalhar em cafés pode ser útil, mas o café está muito caro, e se você quer se dedicar à arte, vai ter que driblar a instabilidade financeira (provavelmente). É bom ser inteligente com o seu dinheiro. A ansiedade de não ter dinheiro pode comprometer muito a sua capacidade de se concentrar e criar. O tédio não é um problema em si, mas o tédio gerado pela pobreza é.


10. Glenn Gould, que foi um grande pianista, descobriu que tocava melhor quando tinha alguém passando aspirador do lado dele — ele não podia ouvir o que ensaiava, só ouvia a música mental sugerida pela movimentação dos dedos nas teclas. Se você não tiver acesso a esse luxo, ou não quiser impor essa tarefa ingrata a alguém, se afaste um pouco do piano e passe aspirador você mesmo, e deixe a imaginação tocar piano dentro de você.


11. Lave muita louça. Trate isso como se fosse uma espécie de luxo.


12. Lição de vida: aprenda a usar crase, ame a crase. 


13. Não fique preso só à arte que é feita hoje. Vá atrás de coisas maravilhosas de outras épocas, de outros lugares, até descobrir o que, para você, é o maravilhoso.


14. Criar é ficar amigo das suas ideias.


15. Não se apaixone pelos seus problemas. Seus problemas sozinhos não fazem de você um artista melhor ou mais profundo.


16. Às vezes o que é tido como importante num dado momento, ou que é polêmico ou muito grave segundo uma quantidade grande de pessoas, não passa de falta de autoconhecimento por parte dessas pessoas que propagam o sentimento de indignação. Se elas se observassem, talvez veriam que o problema delas foi ter dormido pouco naquela noite, ou simplesmente ter baseado a própria vida em critérios que não fazem muito sentido. Não deixe a infelicidade alheia te tirar do prumo.


17. Mas saiba que a tristeza, a insegurança e o medo vão te visitar, o que não é ruim. Mas se a visita se estender, vale lembrar do que o Robert Burton, um autor inglês do século 17, concluiu depois de dedicar anos de sua vida a escrever um livro enorme sobre a melancolia. Ele encontrou um só conselho para driblá-la: “Não fique muito sozinho, não fique muito à toa”. Tatue essa frase no seu cérebro.


18. Existe uma antiga lenda chinesa que fala de um pintor perseguido por um tirano. Para escapar, o pintor desenhou uma paisagem de rios e montanhas e entrou na pintura. Ele se escondeu atrás da curva de uma montanha e nunca mais foi visto.* Se você quer ser uma pessoa que cria, é porque as coisas que já existem no mundo não te satisfazem. Crie então um lugar novo, um lugar que não existia antes. Você vai saber que conseguiu o que queria quando perceber que é para dentro de sua arte que você pode escapar e ficar a salvo — mesmo que por alguns instantes — de qualquer tirania, inclusive a sua própria. Se serve de refúgio para você, vai servir para mais gente. Isso também é uma forma de generosidade.


19. Diante da folha em branco, todo mundo é amador.


* Quase igual aos túneis que o Papa-Léguas e o Coiote pintam para continuar a perseguição. Não sabe? Se você nunca assistiu Looney Tunes, ignore todo o resto desta carta e, antes de mais nada, assista Looney Tunes.

Warner Bros., Looney Tunes

Um livro: Tao te king, de Lao-Tsé. Porque contém tudo o que há e tudo o que não há, e tudo o que pode vir a ser um dia, e tudo o que já foi, e o grande nada antes e depois de tudo existir.


Um filme: De volta para o futuro (1985), de Robert Zemeckis. O filme que, bem ou mal, me fez ser quem eu sou. 


Uma artista: Raquel dos Santos Araújo, campeã mundial de Kung Fu, estilo Louva-a-Deus Flor de Ameixa. Uma artista marcial — a pessoa mais integrada à própria prática que já vi. A técnica dela é impecável, mas também o espírito está no lugar certo. Não tem um movimento dela que não esteja preenchido de intenção.


Uma fruta: Caqui, mas só quando está em época.


Um som: O das coisas que a gente não sabe se são chuva ou não: fritura por imersão, uma sala cheia de datilógrafas, chuveiro ligado, TV velha.


Um nome bom para um gato: Duque Astolfo (personagem de Orlando Furioso, livro mágico do século 16, de Ludovico Ariosto).


Um beijo,


Sofia Nestrovski