Querida amiga,
Publiquei meu primeiro livro há dois anos. Sou um artista iniciante, assim como você. Sim, artista e iniciante. Costumamos pensar em “artista” como uma dessas palavras grandes; ela enche a boca ao ser pronunciada e, quando escrita em papel, parece tão pretensiosa que a tinta chega a vazar pro outro lado da página e manchar a folha seguinte do caderno. Já “iniciante” pertence a outra família de palavras: nós a usamos quando fazemos questão de avisar que ainda estamos amarrando os cadarços, porque temos um longo trajeto pela frente, e já deixamos no ar as desculpas antecipadas por qualquer tropeço no caminho.
Como artista iniciante, quero propor algumas ideias que me ajudaram a começar a escrever. A primeira pode parecer óbvia, mas insisto nela: arte é uma forma de trabalho. Como trabalho, ela compartilha muitas coisas com a jardinagem, a construção civil, a culinária: ela é um fazer que exige tempo, atenção e a sustentação material de nossos corpos. Escrever é colocar uma palavra após a outra, assim como costurar uma roupa é dar um ponto atrás do outro; compor uma canção é sobrepor e ordenar notas musicais que se mesclam e formam um edifício sonoro, não de todo diferente do que faz um pedreiro, que assenta tijolos para construir uma parede. Mas existe, pelo menos quero crer, uma diferença entre o que costumamos chamar de arte e a maior parte dos outros trabalhos – ao menos no capitalismo, em que trabalho é uma mercadoria e muitas vezes uma forma de sequestro do tempo alheio. A diferença é que a arte ainda aspira a alguma forma de liberdade. Não a liberdade absoluta, pois no final das contas ainda somos humanos e, como membros dessa estranha espécie, jamais inventaremos a liberdade incondicional – nossa mortalidade, nossas dores nas juntas, a fome e os repentinos desejos inconscientes que nos tiram da linha nos lembram disso todos os dias. Mas alguma liberdade, sim, e isso já é muito. Gosto de pensar que só me permiti escrever quando comecei a levar a sério o desejo de viver mais livremente e o desejo de brincar de linguagem sem tantas amarras. Você poderia me perguntar: mas liberdade de que e liberdade para quê? Bem, essa é uma pergunta que cada um de nós, artistas iniciantes, deve carregar no bolso quando andamos por aí, olhando com carinho pra ela de tempos em tempos.
Aqui vai uma segunda ideia, ainda brincando com a palavra “artista”: como uma espécie curiosa de trabalho, a arte demanda tempo. Não haveria como ser de outro jeito. Contudo, esse não é um tempo que, necessariamente, terá de ser descontado das outras atividades da vida: ler, conversar com amigos, cuidar das pessoas próximas, lavar a louça. Pelo menos não todo ele. Por uma estranha alquimia, uma vez que decidi escrever, notei que essas outras atividades passaram a fazer parte do que eu comecei a ver como uma “vida de escritor”. Sigo fazendo tudo o que fazia antes, mas percebo que, pelo fato de também me dedicar a escrever literatura, passei a prestar mais atenção e a valorizar algumas de minhas experiências cotidianas, mesmo as mais banais. E veja: atenção e experiência são dois dos instrumentos fundamentais do artista, junto de alguma disciplina – sem disciplina, não há trabalho, em especial no tempo longo dos anos, dos meses, de uma vida.
Gostaria agora de compartilhar com você algumas palavras sobre a ideia de “iniciante”. Alguns anos atrás, quando enfrentava um período de profunda angústia e uma crise existencial que me parecia intransponível, eu descobri uma porção de coisas que me ajudaram a reimaginar meus caminhos. A primeira foi a meditação e algumas ideias fundamentais do budismo. Infelizmente, ainda não tenho a disciplina para seguir uma prática de meditação diária, mas os aprendizados seguem comigo. O maior deles é a ideia de que a sabedoria consiste em manter uma mentalidade de iniciante frente ao mundo. Alguém que medita é alguém que acredita que cada respiro traz um universo novo a ser observado atentamente. Um monge iluminado é alguém que consegue transpor isso para cada aspecto da vida. A minha segunda descoberta nos tempos de crise foi uma paixão literária: Marcel Proust. Em busca do tempo perdido é um livro infinito, e não pelo fato de ter mais de quatro mil páginas, mas porque cada frase abre ao leitor a possibilidade de um mergulho na complexidade sensível do mundo, nos meandros do olhar e do ouvir, no labirinto das emoções e na vastidão sem fronteiras da vida interior. Marcel, o herói do romance, é um escritor iniciante (assim como era Proust, que só escreveu esse único livro em vida), mas também uma pessoa que se coloca frente ao mundo como um aprendiz. Ele mantém ao longo da obra a atenção de uma criança que descobre o mundo e, com isso, nos convida a olhar as coisas de novo, e de novo, como alguém que a cada instante começa uma caminhada sem saber onde vai parar. Esse espírito de abertura para o universo, que apenas os iniciantes em qualquer arte têm, é o que dá energia vital ao processo artístico. Creio que isso vale, aliás, para escritores experientes: sugiro ler ou reler, por exemplo, A hora da estrela, obra da maturidade da arte e da vida de Clarice Lispector, pra ver como a energia nela está na descoberta de algo novo, uma forma nova, um problema novo, uma vida nova.
Eu sei bem: ser artista iniciante é algo que dá medo. E como não daria? Mas creio também que a arte nos ajuda a entender que o medo é o companheiro de quarto do desejo. Eles dividem o guarda-roupas, trocam farpas, saem para caminhar juntos no fim da tarde e, às vezes, até fazem amor. Não há arte sem algum medo, algum calafrio, algum frio na espinha. A arte completamente segura de si provavelmente se mantém no terreno já bastante pisado das certezas, seja de conteúdo ou de forma. Esse tipo de arte pouco me interessa. Fazer arte deve envolver sempre algum risco, mas tudo que vale a pena na vida exige coragem. Sabemos bem, minha amiga, que sem coragem não é possível nem mesmo levantar da cama e passar um café para começar o dia, quanto mais enfrentar uma página em branco, um bloco de argila esperando tomar forma, um palco vazio.
Eu sei que escrever (ou fazer qualquer arte) é uma escolha estranha: afinal, não vivemos em um mundo que mede cada um de nossos atos pela sua capacidade de gerar resultados práticos, tangíveis, mensuráveis? A arte, por sua aposta arriscada na liberdade, deve rejeitar esse imperativo massacrante. Mas são exatamente os caminhos estranhos, as escolhas sem muito sentido imediato, que permitem que a gente se lembre, de tempos em tempos, que a vida pode ser algo maior.