Querido artista,


Me deixou muito orgulhoso o fato de que você me escolheu para fazer parte, em alguma medida, da sua jornada pelo ato de criar. Comecei a pensar em você, nos desafios que enfrenta na carreira, nas inquietações da sua mente. Propus a seguinte pergunta para mim: o que eu deveria escrever na minha carta? De imediato, me veio uma palavra: distância.


Não tenho certeza do momento exato em que nasceu minha vocação literária. Mas posso dizer que ela surgiu ainda na infância. Em entrevistas, ao longo desses anos, eu digo com frequência que tenho duas certidões de nascimento. A primeira é a do dia em que nasci no mês de maio de 1981, ao meio-dia. A segunda certidão de nascimento, por outro lado, é a de quando eu publiquei, aos dez anos de idade, meu primeiro conto, no Jornal da Paraíba. Portanto, em 1991 nascia não um escritor, mas um desejo oficializado de ser escritor. Morador de Campina Grande, na Paraíba, eu cresci sonhando em escrever e publicar livros, embora não tivesse muito bem a ideia de como fazer isso. A minha cidade tem uma rica história cultural, contudo a distância dela em relação a polos editoriais, sejam da região Nordeste ou de outras, me fez acreditar que o sonho era de impossível realização.


Talvez você more, ou tenha morado, em um lugar que pareça geograficamente distante da realização do seu desejo artístico. Isso não diz respeito apenas a uma região do país. Sabemos como não basta morar em cidades como Recife, São Paulo ou Rio de Janeiro, polos culturais tão importantes para o nosso país, para ter fácil acesso a uma carreira nas artes. Dependendo do seu bairro, ou da escola frequentada, ou da universidade na qual você se formou, o ingresso se torna mais difícil do que para quem teve o privilégio de nascer e estudar nas geografias “certas”. A distância física nunca é uma questão em si mesma, porque a dificuldade que ela impõe é a das relações de poder. Pois é, poder. Se queremos ser artistas, ou escritores, é preciso que entendamos que produzir nossa arte não basta por si só. Devemos começar a afinar a inteligência da percepção das redes de poder que compõem a circulação da arte.


De que maneira podemos tensionar essas redes? Primeiro, fazendo a arte que realmente queremos fazer. Segundo, escutando, observando, aprendendo como o meio no qual queremos nos inserir se comporta. Mesmo sem morar em cidades famosas por serem centros culturais de influência, ainda assim é possível entender, em alguma medida, esses movimentos. Neste sentido, é preciso se abrir um pouco ao mundo; neste sentido, é preciso amadurecer a nobre arte da observação-escuta.


A internet é uma aliada? Com certeza. Ela possibilita formas de conexão entre artistas em uma dinâmica muito diferente de duas décadas atrás. No entanto, ela também é fundada numa arquitetura que privilegia, em tantas situações, a desigualdade de oportunidades. Não tenho uma fórmula pronta de como desarticular os nós das dificuldades da carreira nessa seara. Tenho apenas uma palavra de estímulo, no sentido de dizer: a distância geográfica e de poder das relações sociais podem sim ser atravessadas. Você vai conseguir, não tenho dúvidas. Mesmo que pareça difícil, você vai dar conta. No entanto, outra vez, te lembro disto: antes da militância e de uma carreira, vem a linguagem. Vem o amadurecimento da própria voz. É na sua voz artística que você descobrirá o principal poder para implodir os lugares mofados e construir o novo. A partir dela, a propósito, você vai encontrar seus aliados: gente que vai admirar seu trabalho e topar caminhar contigo.


Falei da distância física, mas quero agora que a gente olhe para a ideia de distância no processo da criação. Escrever, criar arte no geral, mexe profundamente conosco. Há muito em jogo no ato criativo, há muito de nós mesmos. Eu não sei no seu caso, mas eu sou uma pessoa fascinada por espelhos. É estranha a fascinação, porque eu detesto me ver em um deles. Se entro em um elevador, por exemplo, com aquele espelho enorme diante de mim, dou uma rápida olhada e logo viro a cara. No entanto, eu escrevo com frequência sobre espelhos. Pois bem. Dentro ainda da nossa dança da distância, quero te dizer que às vezes, quando criamos algo, é como se estivéssemos com nossa cara grudada num espelho. Você, aliás, brincou disso na infância?


Com o passar dos anos, eu entendi que distância não é algo somente geográfico, ao falarmos da escrita e das artes; diz respeito, também, ao enlace quase amoroso, ou pós-amoroso, entre nós mesmos e nossas criações. Diz respeito ao gesto que cria a linguagem a ser habitada pelo Outro. Habitar a linguagem, a nossa linguagem, é um ato feito em primeiro lugar por nós mesmos. Distância, no ato criativo, é se afastar do espelho até um ponto no qual a nossa imagem projetada ali passa a fazer parte de um todo maior. Isso vale, na escrita, inclusive se você curte produzir autoficção, biografias ou crônicas, ou seja, as várias escritas do Eu.


Tudo se trata de convidar uma ironia, um humor e um riso a mediarem a empolgação que pode nascer do ato criador. Se voltarmos ao mito bíblico da criação do mundo, lá no Gênesis, vamos lembrar que Deus criou o mundo em seis dias e no sétimo descansou. Talvez Ele não estivesse cansado de fato. Talvez Deus só precisasse dar um tempo, deixando o mundo decantar na gaveta antes de revisar o manuscrito. Portanto, na nossa caminhada, é fundamental o aprendizado da distância em relação ao nosso próprio trabalho. Buscar outros olhares, outras perspectivas, sair de si. Isso significa muitas coisas: fazer oficinas literárias, estudar, dialogar com a crítica, lidar com um editor, escutar os leitores, formar sem cessar um repertório. Com um certo distanciamento como prática estética, a gente aprende que há sempre uma dimensão coletiva em qualquer arte. Ela nunca é só nossa. Ela é mutável. Arte é prática, é processo; é mais a caminhada do que o resultado supostamente inquestionável.


Se falei de distância, quero também falar da sua oposição. No tocante às relações de poder escondidas na geografia, eu te sugeri não celebrar esse poder, mas o perturbar com a força e a originalidade da arte que você criará. Também falei o quanto, a partir da nossa paixão criativa do espelho, pode ser salutar dar alguns passos para trás e exercitar uma ironia em relação ao incêndio que pulsa no coração do criar. Percebo, então, que esta brincadeira do perto-distante se trata de reavivar, redescobrir, ressuscitar a função básica do desejo de sair de si, de inventar, de encantar, de emocionar – desejo cujo ponto de chegada é um reencontro com o habitante estranho que todo artista guarda dentro do próprio coração.

René Magritte, Os amantes, 1928

Um livro: O vampiro antes de Drácula, organizado por Martha Argel e Humberto Moura Neto. Antologia recém-republicada, atualizada e revista pela Aleph. Além das lindas ilustrações, ela é uma ótima amostragem de um dos meus subgêneros favoritos: os contos góticos sobre vampirismo do século 19.


Um filme: Esse obscuro objeto do desejo (1977). O surrealismo, após marcar minha adolescência, tem voltado a ser uma estética de referência forte para mim como escritor. Este é um dos melhores filmes de Buñuel. 


Uma artista: Mayra Andrade. Estou encantando com a música desta artista, cujo trabalho descobri por acaso há poucos meses. É lindo ouvir a doçura dela em músicas cantadas em português, francês, inglês ou crioulo cabo-verdiano.


Um abraço,

Cristhiano Aguiar